[Conto] A Arte do Acaso
Decidi que era o momento de jogar algumas coisas fora. E procurando qualquer coisa dispensável nas minhas gavetas descobri algo: uma carta. Um envelope pardo, sem remetente, nem selo. Mas havia meu nome nele: Para Bianca. Alguém o havia colocado ali. Nas primeiras linhas descobri de quem era. E as linhas seguintes me fizeram chorar muito.
Capítulo 1
Era um tempo triste, de solidão profunda, um vazio de cores e inspiração. Desses dias em que a gente pensa em acabar com tudo num simples gesto. Sentara no banco do parque para observar os transeuntes. Estava tão ligado à rotina do trabalho, que já não era artista, mas um técnico da arte. Havia me esquecido de certos prazeres que a natureza pode proporcionar à imaginação. Perceber o simples farfalhar das folhas das árvores, nos seus variados tons de verde, o canto mavioso dos pássaros cinzas e azuis, os patos brancos boiando no lago, crianças com seus sorrisos puros brincando de bola, alguns fazendo seu cooper matinal, em duplas ou na solidão dos seus fones de ouvido. Perceber o céu azul límpido e majestoso. Inspirar o ar puro daquele lugar era algo revigorante. Fazia-me sentir um pouco melhor.
Havia alugado um quarto com o dinheiro que ainda restava. Tinha uma cama e um banheiro, era o suficiente. Não suportava mais ficar preso naquele quarto totalmente branco. Aquele branco chegava a me dar nojo. Transmitia uma paz fajuta. Por isso havia decidido ir ao parque. E no parque, sentado no banco, curtindo as árvores, os pássaros e as outras coisas, não me dei conta de que havia se sentado ao meu lado uma jovem mulher. Ajeitei a armação dos óculos. Ela estava abstraída. Sua visão estava fixa no caule descascado de um pinheiro a um tiro de distância. Seus cabelos eram castanhos, os olhos também castanhos, como açúcar derretido. Parecia estar em transe, nem chegava a piscar os olhos. Não sei como ela foi aparecer ali. Não a vi sentar-se.
Ficamos num longo silêncio. De certa forma me sentia impelido a falar com ela, mas não ousava chamar sua atenção. Como ela havia chegado depois, se tivesse alguma educação, seria a primeira a puxar uma conversa. De soslaio vi cair pelo seu rosto uma lágrima. Tentava desvendar o motivo de estar chorando. Criei mil teorias, entretanto não pude escolher uma. Seria muito egoísmo meu escolher o motivo de alguém estar chorando. Mas tudo bem. De uma coisa tinha certeza, não havia sido eu quem a machucara. Minha mente se regozijava em não ter sido o culpado de ter ferido aquela moça.
- Sabe...
- Er, pois não? - fingi desatenção.
- Por que às vezes a vida é tão mesquinha? - perguntou a moça.
Com essa iniciativa apequenou-se nossa distância. Agora me sentia dela. A resposta, além de ser uma retribuição, também deveria ter uma explicação, que eu não tinha. Por fim decidi afastá-la.
- Olha, moça, eu não estou muito a fim de conversar.
- Não seja tão mau. O que te custa me ouvir um pouco? Só me ouça um bocadinho e logo vou embora.
- Tudo bem. Mas quanto à sua pergunta eu não tenho resposta.
- Sabe... até um mês atrás eu era uma pessoa alegre. Minha irmã tinha me visitado. Fazia tempo que não a via. Acho que uns três anos. Ela estava super-feliz. Havia conseguido uma promoção no trabalho, seu namorado a havia pedido em casamento e decidira me visitar, morávamos em estados diferentes, para me contar como estava indo tudo bem. Ficamos um final de semana tão juntas como nunca havíamos ficado. Rememoramos toda nossa infância. Era minha única irmã e minha melhor amiga.
- Qual o seu nome?
- Não tenho nome. Sou apenas um corpo andante por aí, uma andarilha. Chame-me do que quiser. Posso continuar?
- Claro, me desculpe, continue.
Ela continuou sua história com um olhar firme, mas voz embargada. Em alguns momentos engolia o que falava, talvez tentando escolher as palavras menos dolorosas.
- Quando ela estava indo embora, fomos ao aeroporto juntas, minha irmã me deu um abraço tão forte - neste momento sua voz começou a ficar trêmula - que parecia uma despedida para a vida toda - chorou um pouco - e foi mesmo - ela não enxugava as lágrimas, que caíam copiosamente - Ela morreu durante o voo, ataque cardíaco.
Eu não sou muito ligado em assuntos tristes. Não gosto. Já tenho meus problemas e não queria que uma desconhecida dividisse suas dores comigo. Aquela moça era mais uma das muitas passageiras da minha vida. Sabia que em pouco tempo já não estaria na minha memória. Era apenas mais uma dessas pessoas que passam e não guardo a fisionomia, pois minha mente já estava preparada para classificar quem chegasse perto de mim.
- Olha, lamento sua perda, mas não quero saber. Só acho que você deveria esquecer isso e prosseguir. Todo mundo morre um dia.
- Nossa! Eu pedi só para que me ouvisse. Não pedi sua opinião! - esbravejou contra mim.
- Como você é grossa!
- E como você é estúpido!
Disse isso, levantou-se e se foi. Pronto! Estava confirmada minha teoria. Pessoas vêm e vão. Não tinha intenção nenhuma em me apegar a alguém que passaria os próximos dias a chorar a perda de um parente. As pessoas morrem mesmo, já deveriam estar cientes disso. Assim como eu, elas não deveriam se apegar. Repelia amizades. Isso evita dores de cabeça e lágrimas à noite.
Continuei no meu banco, observando as coisas. Porém a lágrima daquela moça começou a divagar na minha mente. Tentei limpá-la da minha memória, tinha que ficar preocupado era comigo, não com uma moça com problemas. Eu tinha meus problemas, portanto deveria pensar em mim. Decidi ir para casa. Neste dia eu pensei em tanta coisa. Tentei refazer meu caminho na vida até aquele ponto. Tudo que havia vivido. Minha adolescência, a escola, faculdade, namoros, briga com meu pai, fuga de casa... A última coisa com a qual deveria me preocupar era com os problemas de desconhecidos.
Capítulo 2
Quando entrei no quarto e acendi a luz, pois já eram umas oito da noite, deparei-me com aquele branco de novo. O branco sem graça que permeava as paredes. Tentei dormir, contudo não me saía da mente a lágrima daquela moça. Será que eu havia sido tão ruim assim com ela? Fui grosso mesmo? Mas ela que havia chegado, eu não queria conversa. Ela deveria ter respeitado meu espaço. Havia chegado primeiro àquele banco, não ela. Agora já era. Não havia como pedir desculpas. Era passado. Com certeza nunca mais a veria. Isso era um fato.
Não conseguia dormir. Por um instante aquela moça fez eu me esquecer dos meus problemas. Comecei a pensar nela. Como estaria agora? Chorava? Será que estava no banco do parque tentando conversar com outra pessoa? Não sabia. Essa efervescência me fez querer criar.
Peguei o pequeno caderno de desenho, onde jogava meus rascunhos. Havia tempo que não rabiscava nada nele. A inspiração e a criatividade haviam viajado para terras distantes. Peguei também meu lápis número dois e naquele momento pude ver claramente a retina daquela mulher se formando no caderno. Seus olhos castanhos foram se transformando em amendoados, em seguida cor de mel. Pude me ver entrando em seus olhos. Lá dentro havia um lindo jardim, bem verde e arborizado, em tons quentes. Tulipas e lótus que se transformavam em pássaros ao meu toque, dois sóis radiantes em lados opostos, árvores vermelhas, amarelas, azuis, cujos frutos eu desconhecia. Montanhas imensas que se perdiam no horizonte. Uma escultural cachoeira longe derramando incessantemente águas agitadas que ao cair no chão se comportavam, fazendo um caminho cristalino, percorrendo os bosques, o deserto, o jardim, um eterno caminho de alva beleza. Duas crianças brincavam alegremente à beira do riacho onde pedras brilhantes reluziam através da água na face delas. Vi uma garotinha enchendo suas mãos de água e jogando na direção da outra garotinha, molhando o vestido lilás desta. Porém esta não se irava, ao contrário, ria e também jogava água no vestido amarelo da outra. Suas risadas puras ecoavam por toda a terra. Se você já viu uma criança rindo de felicidade, sabe do que estou falando. As nuvens formavam animais. Eles corriam nos céus como se estivessem numa savana. Havia cores vívidas por todos os lados, tudo era muito nítido, detalhes não passavam despercebidos. Um lugar de sonhos encantados, etéreo e inalcançável.
Lá no fim do horizonte surgia uma tempestade. Nuvens negras, raios e trovões se achegavam morosamente. Eram lobos e chacais nos céus. Os animais que estavam antes na savana celeste corriam na direção contrária. As árvores se escondiam debaixo da terra. Os trovões pareciam gritos bestiais de dor e raiva, assustadores. O riacho diminuíra a intensidade de sua correria. A tempestade vinha banhada de cores frias, arrebatando tudo para si. As garotinhas tentaram se segurar no que podiam, entretanto a tempestade era muito forte. Uma delas se segurou num tronco velho que estava próximo ao riacho e com a outra mão agarrava sua companheira. Gritavam com todas suas forças, pediam para que a tempestade parasse, que fosse embora. Mas esta nada entendia da linguagem humana. Até que as mãos das meninas se soltaram. Os olhares trocados de temor e medo penetrava em ambas, fazendo com que uma sentisse a dor da outra. Uma delas fora sugada para o centro do redemoinho cinzento que a tempestade havia formado. E em seguida como que se desligassem um botão a tempestade voltou para o lugar de onde tinha se originado, levando de volta as cores frias consigo. A garotinha que havia ficado chorava como se tivessem arrancado sua alma. Sua irmã havia desaparecido para sempre. Olhou para o céu e viu somente um sol. Este não brilhava com a mesma intensidade de quando eram dois. A claridade do lugar minguou, da mesma forma como quando o sol vai se pondo. Quando a luz vai dando lugar à escuridão.
Acordei assustado sem saber até que ponto havia desenhado. Em algum momento eu tinha dormido. O que era real? Parecia um filme. Olhei para o chão e lá estava o caderno. Peguei-o na curiosidade de saber se tinha desenhado algo. Deparei-me com todas as suas páginas preenchidas por formas. Um olho, uma nuvem, uma tempestade, uma criança. Eram relances do que havia acontecido. Havia desenhado sem perceber. Era como se minha inspiração tivesse voltado. Via sombras recheadas de flashes. Em algumas partes eu havia colocado um símbolo e cada símbolo representava uma cor, como se quisesse dizer a mim mesmo onde cada cor entraria naqueles desenhos. Os desenhos eram magníficos e eu precisava pintá-los. Precisava ir ao ateliê.
O ateliê era cedido. Minha mecenas, a senhora Júlia Godin, uma mulher de idade avançada, muito bem de vida e que gostava de arte, deixava eu pintar meus quadros em um empório artístico que ela administrava. Porém há algum tempo meus trabalhos haviam perdido seu brilho e espaço. Dessa forma meu material estava guardado numa salinha contígua. Eu tinha a chave. Cheguei lá por volta das 5 da manhã. Preparei meu material: o cavalete, a tela, o estojo, escolhi o melhor pincel e coloquei o caderno de desenho à vista. Pintava a óleo. Lá fiquei pincelando vários quadros com as imagens que aqueles desenhos me proporcionavam, alguns eram pura inspiração do momento. Ao terminar, olhei bem, cheguei a pintar nove quadros de uma vez. E em cada um deles podia ver minha alma. A arte havia voltado. Eram oito da manhã.
Chorei como criança ao ver o que havia criado. Era belo, era novo, era meu. Limpei meu rosto, troquei de roupa e fui ao parque na esperança de reencontrar aquela moça. Sentei no mesmo banco. Algo dentro de mim dizia que ela retornaria. E ao mesmo tempo sentia que era perda de tempo permanecer ali. Fiquei todo aquele dia buscando o rosto dela naqueles que passeavam. Nada. Minha musa agora era somente sombra de um dia que se passou. E ainda por cima a havia tratado mal. Isso me doía. Os dias que se seguiram foram tomados por uma obsessão. Eu a via em todos os lugares. E continuava pintando. A mecenas elogiou minha arte. Disse que era algo novo e ela gostava. Estava disposta a apresentá-la numa exposição de arte que teria na cidade dali a alguns dias.
Na exposição meus quadros venderam bem. Não gostava da ideia de vendê-los, mas precisava do dinheiro. Acabei mudando para uma casa. Era pequena, no entanto já tinha uma cozinha e uma sala. Perguntei ao locador se poderia pintar aquelas paredes da casa. Ele disse que sim, contanto que ao final do contrato eu retornasse à sua cor original. Mesclei tantas cores quanto queria na pintura dos cômodos. Algumas formas concretas, outras surreais. Em cada forma estava impressa a imagem da moça. Não era possível desvencilhá-la de tudo que pintava.
Capítulo 3
Todas as manhãs subseqüentes eu permanecia no banco, na esperança de reencontrar a moça.
Um dia houve uma exposição no centro da cidade. Minhas novas telas estariam lá e minha mecenas pediu que eu ficasse no local. Adorava ficar observando as pessoas se perdendo nos meus quadros. Andava de um lado para o outro sem me identificar. Dona Júlia disse que para vender bem meus quadros deveriam ser assinados como Adriano Mendez. Ela havia convidado alguns homens importantes e dizia que meus quadros eram de um pintor espanhol. Não reclamava pois isso, além de encarecer os quadros, rendia-me um bônus. Oito obras minhas estavam lá.
Qual foi minha surpresa ao ver uma mulher, cabelos castanhos curtos, com um belo vestido preto curto, muito elegante, apreciando meu melhor quadro. Ela franzia a testa, apertava os olhos. Tentava desvendar o que havia por trás das tintas. Fiquei distante um pouco. Era a mesma do parque! Não era a moça triste daquele dia, era uma mulher muito segura, resoluta. Haviam-se passado cinco meses desde aquele dia que nos encontramos a primeira vez. Será que havia percebido que era ela quem estava ali naquele quadro mesclada em formas e cores? Impossível. Não tinha como ela saber. Decidi me aproximar. Estava ansioso, não sabia se pedia desculpas, se me apresentava como o homem do parque. Talvez ela nem se lembrasse mais daquele dia. Ou se me mostrava como o artista plástico criador daquele quadro, ou ainda como um singelo apreciador da arte.
- Olá
- Oi - ela disse, pega de surpresa.
- Gosta da arte, minha cara?
- Gosto sim, mas estou a trabalho.
- Posso perguntar de que trabalha?
- Se o senhor me responder quem é.
- Um apreciador da arte.
- Sou jornalista. Mas a resposta que o senhor me deu não me parece ser sua profissão.
- Não - disse rindo - sou somente um convidado. Está acompanhada?
- Sim.
- Que pena.
- Com uma amiga.
- O que entende deste quadro? - perguntei, aliviado por saber que não estava com namorado ou coisa parecida.
- Estava tentando entender. Sinto uma certa dor. Não sou uma aficionada por pinturas, mas este me parece triste.
- Sim, as cores frias denotam tristeza. Este fala sobre a dor da perda.
- Como sabe?
- Perceba as delineações em torno de algo que parece um olho. As sombras que permeiam as pontas da tela. As cores escuras usadas. Veja como a linha negra percorrendo o quadro de cima a baixo se assemelha a uma lágrima. Essa mulher sofreu muito.
- Como sabe que é uma mulher?
- Sinto que é, eu a vejo se derramando por detrás das tintas, há uma suavidade em sua íris.
- Muito instigante sua observação. Vê mais do que aparece na tela.
- Obrigado. - eu disse, não tinha como eu não saber, eu tinha pintado aquele quadro. - Fazendo alguma matéria?
- Minha amiga está. Eu só vim acompanhá-la. Ela é da seção de arte e cultura.
- Conhece o artista que fez estes quadros?
- Não, ouvi dizer que é um espanhol.
- Conhece Portinari? - estava um pouco nervoso, por isso não parava de fazer perguntas.
- Já ouvi falar. Isso é um interrogatório? - perguntou levantando a sobrancelha direita, com um leve sorriso de canto de boca.
- Foi um grande pintor. Sabia que ele morreu intoxicado com a própria tinta? - fingi que não ouvi sua pergunta, admirava o quadro, buscando algo interessante para falar.
- Nossa!
- Qual o seu nome? - disparei curioso.
- Bianca. - dessa vez ela respondeu objetivamente - E o seu?
- Adriano. Prazer. - peguei sua mão direita, curvei-me e deixei um beijo nela. Sua mão era bem perfumada, um certo odor de aloés.
Ficamos ali conversando. Ela não me reconheceu daquele dia, todavia meus olhos brilhavam em vê-la assim, feliz. Parecia até que era outra pessoa. Eu parecia lhe agradar. A senhora Godin chegou e puxou meu braço, ignorou Bianca como se ela nem estivesse ali, queria me apresentar para um comprador. Saindo olhei para Bianca obliquamente, ela também olhava para mim. Disse algo enquanto eu saía que não me esqueço: " A dor nos torna mais fortes."
Capítulo 4
Naquela noite não contei a ela que era eu o pintor daqueles quadros. Não sei porque fiz aquilo. Acredito que tenha sido medo, sei lá. Não quis me revelar. Não sabia ao certo como, mas comecei a pensar naquela moça de uma forma diferente. Não era mais a moça do quadro, escondida em tintas e formas, em contrastes e misturas de cores. Era alguém real, como se minha arte tivesse vida. Sei que não faz muito sentido dizer isso. Ela era minha musa, da realidade a coloquei no quadro. Era como se eu a tivesse criado, era uma obra de arte viva. Como se um feitiço tivesse sido jogado, a musa virou a arte e a arte virou a musa. Havia essa alienação rodando na minha cabeça. Comecei a me apaixonar pela minha criação.
Permaneci dias assim, racionalizando aquela situação. Um dia estava num destes momentos neste pensamento dormente até que fui trazido para a realidade. O telefone tocou.
- Alô? - atendi.
- Oi, filho. - saudou-me uma voz rouca e pesada, que somente uma pessoa que eu conhecia tinha.
- Oi, Mauro.
- Ainda me chama pelo nome? - indagou decepcionado o homem a quem não chamava de pai havia alguns anos.
- O que quer?
- Tenho uma notícia ruim para te dar. - sua voz ficou mais pesada.
- O que houve? - perguntei meio assustado.
- Sua mãe...faleceu hoje de manhã.
Aquilo caiu-me como uma bomba. O chão se partiu, meus olhos ficaram estáticos. Um filme correu na minha cabeça. Minha mãe. Minha melhor amiga.
- É brincadeira não é?! Ela está aí ao seu lado, não está?!
- Infelizmente não, filho.
- Mas...como foi isso?
- Um louco, bêbado, estava dirigindo um carro, atropelou sua mãe.
Não aguentei aquilo. Chorei e meu pai ficou ouvindo do outro lado. Não conseguia desligar o telefone. Eu precisava de alguém e no momento a única força que eu tinha era daquele que por dez anos havia se tornado um estranho, do outro lado da linha. Nesta hora eu precisava de um pai, não do Mauro. E ele de mim.
- Estou indo para aí.
- Sim, venha. Estarei te esperando. - disse Mauro, triste.
Depois que terminei de falar com ele me lembrei da Bianca. Rememorando aquele dia no parque quando fiz pouco caso da sua perda. Agora era eu quem estava sentado no banco com a lágrima caindo morosa. Minha mãe era minha melhor amiga. Sempre me dava força, me ligava. Era com ela que eu desabafava. Era com ela que eu conversava quando algo dava certo, ou errado. Contava tudo pra ela. Lembro-me do seu choro quando saí de casa gritando com meu pai. Ela não compreendia aquele desentendimento entre meu pai e eu. Um dia vi meu pai com outra mulher dentro do carro dele, aos beijos. Não aguentei aquilo. Falei com ele que aquilo era errado. Ele disse que ia parar, mas depois peguei novamente ele com a mesma mulher. Quando ele chegou em casa perguntei se estava tudo bem. Ele disse cinicamente que sim. Minha mãe estava na cozinha e eu falava baixinho com ele.
- Pai, eu vi.
- Viu o que, filho?
- Não adianta esconder. O senhor disse que iria parar.
- Mas parar com o que? - fez-se de desentendido.
- Estou falando da outra mulher.
- Shhhh, ela está me chantageando. - diminuiu mais ainda seu tom de voz.
- E a mamãe?
- Filho estou tentando contornar isso da melhor forma.
- Não concordo com isso. Ou o senhor pára de vez de se encontrar com essa mulher. Ou eu saio de casa.
- Calma, é uma questão delicada.
- Não me importo. Vai parar ou não?
- Filho ela me deu um ultimato, preciso de mais um tempo para acabar com isso de uma vez.
- Chega!!! Você já fez sua escolha. E a partir de hoje não me considero mais seu filho! - gritei com ele, tudo aquilo estava entalado na garganta.
- Faça o que bem entender então! - como se não se importasse.
Meu pai nunca foi fã do meu apego às artes plásticas, dizia que era coisa de desocupado. Não me admirou ele não se importar por eu sair de casa. Talvez achasse que assim eu conseguiria um emprego de verdade. Minha mãe veio para a sala assustada com os gritos. Estava boquiaberta por estarmos discutindo.
- O que houve?
- Nada, Regina, nada. Adriano está apenas sendo infantil.
- Fez sua escolha, Mauro. Mãe, estou saindo de casa.
Lembro-me perfeitamente do seu rosto tenso. Minha mãe estava embasbacada com minhas palavras. Ela olhava para mim e depois para o meu pai, buscando entender o que estava acontecendo. Meu pai estava olhando através da janela, para fora, de costas para ela. Eu a abracei fortemente, em seguida saí do abraço e olhei nos seus olhos. Ela ainda estava pasma, com os olhos cheios de lágrimas. Minhas mãos seguravam seu rosto.
- Será melhor pra mim, mãe.
Ela não entendia. Subi para meu quarto e arrumei minhas coisas. Enquanto dobrava uma camisa ela apareceu na porta do quarto.
- Filho, tome. - ela me estendia um envelope.
- O que é isso?
- Vai te ajudar por um tempo, é pouco, mas é o que tenho. Eu tinha guardado para você. Sabia que algum dia iria querer sair de casa e eu não conseguiria te impedir. Aí está um cartão com a senha. Tudo que tem lá é seu.
Com o que tinha lá é que fui me virando. Por cinco anos me mantive com aquele dinheiro.
Capítulo 5
No dia do enterro chovia. Guarda-chuvas de um negrume mórbido tentavam impedir as gotas que caíam de molharem as pessoas. Eu não usava guarda-chuva. Estava aberto para o tempo. O pesar e o luto estavam impregnados no lugar. Outros como minha mãe já estavam ali há mais tempo, depositados em esquifes de madeira barata devorados pelos insetos subterrâneos. Eu chorava. Minhas lágrimas se juntavam às gotas da chuva fria que batia na minha testa e percorria o meu rosto. O céu estava cinza. Entre nuvens carregadas viam-se raios descontinuados e trovões clamorosos que emitiam advertências de quando em quando. Eu também gritava por dentro, um não que não diminuía a intensidade da dor que me causava enterrar minha mãe. O pastor principiou um discurso sobre a vida. Não me ative às suas palavras de conforto. Elas não iriam me ajudar.
Minha mãe deve ter ido para o céu. Ela merecia. Era um anjo. Olhava ao redor, havia muitos parentes na ocasião. Todos trajando a roupa na cor que se deve dedicar quando alguém adentra as portas do descanso eterno. Alguns expressavam lamento, outros mantinham o rosto imparcial. Observava suas expressões. O tio Natanael, irmão da minha mãe, parecia um quadro de Munch. Tia Cláudia exibia um olhar monalísico, meio azul-escuro. Se eu pudesse ver meu rosto, talvez distinguiria Guernica. Meu pai era uma tela em branco, sem cor ou expressão.
Desceram o caixão enquanto o coral da igreja que minha mãe frequentava entoava um cântico:
- Então minh'alma canta a ti, Senhor. Grandioso és tu, grandioso és tu.
O caixão encontrou o chão. Os homens jogaram as cordas dentro da cova escura. As mulheres atiravam rosas, enquanto o coveiro atirava a terra. Até que levantei meus olhos e vi nas que jogavam rosas ela. Bianca estava ali no meio, com óculos escuros, roupa denotando seu luto. Não podia ser. Como ela poderia estar ali? Por que ela estaria ali? Todos começaram a sair, eu fui no encalço dela. Ela seguia um outro caminho, oposto ao que os outros tomavam. Adentrava o cemitério. Segui-a. A chuva parara de cair e uma densa camada de névoa começara a descer. As árvores sumiam, o horizonte foi se esvaindo, dando lugar a um nevoeiro cinéreo. Eu me guiava pelas lápides que formavam uma vereda de morte, continuava a segui-la. Para onde? Não me saía da cabeça essa interrogação. Para onde ela estava indo? Até que... até que ela sumira no meio do nada. Antes de desaparecer ela atravessara uma lápide, como se esta não estivera ali. Caminhei lentamente até a lápide. Havia uma foto acompanhada de uma frase. O nome inscrito era... não podia ser... olhei uma fotografia gasta que estava embaixo do nome e fiquei pasmo: Bianca Camargo. A fotografia exibia a imagem de uma jovem sorridente. A frase ao lado era: "A dor nos torna mais fortes". "Nascida em 23-04-1982, tirada de nós em 23-04-2010". Fiquei vários dias pensando no que ocorrera. Não podia ser irreal. Não fazia sentido. Eu amava um fantasma.
Capítulo 6
Depois de ler o conteúdo da carta vi Adriano encostado na porta a me observar.
- Nossa! O que é isso, amor? - perguntei.
- Escrevi ontem. Estou despertando outra arte dentro de mim. Queria apresentar este primeiro texto a você. Ficou legal?
- Você me colocou como um fantasma?
- Achei interessante, como se quisesse me alertar da morte da minha mãe. - saiu da porta e veio se sentar ao meu lado.
- Mas não foi assim.
- Sei que não, mas quis dar um toque sobrenatural. Percebeu que ninguém viu a Bianca desde o começo do conto? Ela aparece do nada no banco, aparece do nada na exposição e aparece do nada no enterro.
- Você podia ter simplesmente dito a verdade.
- Ficaria meio sem graça. As pessoas querem algo mais profundo e recheado de mistério.
Se eu tivesse escrito, teria um final diferente. Não gostei do texto. Senti que faltava alguma coisa. Na minha visão eles teriam um romance normal, assim como o que vivemos hoje. Depois do enterro da mãe dele, isso foi verdade, eu me apresentei. No dia da exposição, quando ele veio falar comigo, eu o reconheci daquela manhã no parque em que chorei na frente de um estranho. Ele não tinha culpa. Brigamos aquele dia, mas nenhum de nós era culpado. Eu estava triste e ele chateado por algum motivo, mas guardei seu rosto. Talvez estivesse verdadeiramente pior do que eu. Tentei mudar então, como ele sugeriu. "Esquecer isso e prosseguir." Prosseguir...
As outras pessoas chegavam e choravam comigo porque estava muito triste com a morte repentina da minha irmã, mas ninguém me levantava. E foi justamente um estranho que me deu a força que precisava. Cortei o cabelo, comprei roupas, dediquei mais tempo ao trabalho para esquecer um pouco a tristeza. Algumas vezes pensava em dar um pulo no parque, para ver se ele estava lá, se estava bem. Algo sempre me impedia. Mas seu rosto ficou gravado na minha memória.
O nosso encontro na exposição foi casual. Eu o reconheci de imediato. Ele estava feliz por dentro. Percebi. Estava melhor, jovial, parecia nervoso, realmente me jogou um monte de perguntas. Deixei ele pensar que sabia mais do que eu. Seu sorriso me encantava. E percebi quem era o pintor daqueles quadros. Sabia que a mulher que estava apresentando a exposição era Júlia Godin, e como boa jornalista sei seguir as pessoas para saber o que está acontecendo. Em vários cantos da exposição ela pegava Adriano pela mão e saía apresentando-o. Ele era o artista. Ele olhou para mim, desviei o olhar e me dirigi a um quadro qualquer. Ele chegou e ficamos conversando. Depois saiu, carregado pela senhora Godin. Eu queria saber mais dele. Então o segui até chegar em sua casa. Parece loucura mas queria conhecê-lo no íntimo, então chamei um ajudante meu que instalava escutas. O rapaz então colocou uma escuta no telefone da casa de Adriano. Loucura mesmo. Nunca falei para ele que fiz isso, mas foi assim que soube da morte de sua mãe. E foi também assim que fui parar no cemitério no dia do enterro. Adriano precisava de alguém. E eu estava lá. Ele me viu e principiamos uma conversa. Marcamos um encontro alguns dias depois dali. Como eram agradáveis nossas conversas . Viramos amigos e depois de um breve tempo nos tornamos amantes. E hoje estamos morando juntos, numa casa bem maior do que aquela em que ele morava, onde as paredes eram brancas. Nossa casa também tinha paredes brancas, todavia ele já fez o favor de pintar todas elas. Somente hoje vim saber que ele pensava em mim, mesmo depois de tê-lo chamado de estúpido.
Não haviam fantasmas como ele escreveu na sua história, havia somente o mar da vida carregando a gente para o mesmo porto através de ondas opostas que sempre teimavam em se encontrar. Como linhas tortas numa pintura clássica onde de perto não discernimos a imagem desenhada, ranhuras talvez, mas quando nos afastamos acabamos por nos aproximar do mundo imaginário do artista, podemos ver o quadro por completo. A arte do acaso. Acredito que este final tenha ficado melhor que o dele.
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