Céu e Inferno
Susana sorria com o marido dentro
do carro enquanto estavam indo para a casa da mãe dela. Enquanto ele dirigia havia
contado uma dessas piadas muito sem graça, mas que ela fingiu achar graça, para
não deixá-lo sem graça. Cada um se respeitava desta forma, querendo deixar o
outro à vontade. Não brigavam, mas as discussões eram salutares,
desentendimentos eram passíveis de acontecer, mas não eram tratados como o fim
do mundo.
O caminho para a casa da mãe
durava algo em torno de meia hora. Chegariam logo. Ela estava feliz, conseguira
adiantar suas férias e poderia curtir o restante da gestação em casa. Carregava
no ventre um filho de oito meses. Ele, Oscar, trabalhava como gerente de banco.
O dia anterior, sexta-feira, começo de mês, era daqueles mais trabalhosos,
porém ele não queria pensar naquilo. Era momento de descansar. Na casa da mãe
de Susana estariam também outros parentes. Oscar estava falando sobre seu
cunhado.
- Você ri porque não é contigo. Ele fica lá
todo imponente, se fazendo de maioral. Fica me cutucando quando alguém passa na
nossa frente e cochicha sobre aquela pessoa. Não suporto isso. – num tom de
deboche.
- Mas você percebe que ele fala
mais com você?
- É isso que me dá medo. E se ele
estiver interessado em mim?
Ela ria de novo. Seu irmão,
Rafael, de fato conversava mais com Oscar, mas era porque eles torciam pelo
mesmo time de futebol.
Oscar olhou o velocímetro
rapidamente, marcava 120 km/h. A via de mão única não estava movimentada.
Ficaram em silêncio por uns instantes. Ela olhava as árvores lá no fundo do
horizonte. Direcionava o olhar para o canavial, ainda baixo, até seus olhos
alcançarem a cerca de madeira emaranhada de metal. Trazia a mão direita no
queixo, o pensamento distante. A esquerda fazia uma massagem em sentido horário
em sua barriga. Ela tinha vinte e sete anos, passara por uma infância
conturbada. Perdera o pai muito cedo. A mãe teve que criar os três filhos
sozinha. Ela era a mais nova. Rafael, o primeiro, seguido pela outra irmã,
Marta. Susana pensava em Marta. A única que não teve interesse em se formar.
Juntara-se a pessoas erradas e morrera por overdose de drogas havia quatro anos.
Susana perguntava a si mesma se havia errado em alguma coisa. Se não dera
atenção o suficiente para a irmã, ou se deveria ter insistido para ela não sair
de casa naquela noite de novembro. Lembrava-se da mãe no momento em que a
polícia chegara ao portão para dizer que encontraram o corpo dela na casa de
uma amiga, que tentaram reavivá-la, mas Marta já havia partido para sempre. Ainda
se lembra perfeitamente da reação de sua mãe, colocando a mão na boca, os olhos
repletos de lágrimas, e ficava repetindo a palavra “não”. Susana tentou
reconfortá-la, mas precisava de consolo também. As duas ficaram então no
portão, uma abraçando a outra, chorando.
O reflexo do vidro do carro
naquele momento mostrava Susana derramando uma lágrima solitária. Tinha medo
pelo filho que nasceria. Que mundo encontraria? E continuava acariciando a
barriga. Sua vida estava cheia de fatalidades. Ela temia, mas a vida tinha sido
tão boa estes últimos tempos...
- Está pensando em quê, amor? –
indagou Oscar, olhando rapidamente para ela e voltando o olhar para a pista.
- Não é nada. – ela desconversou,
limpando timidamente a lágrima.
- Tudo bem. Está calor hoje, não
acha?
- É verdade. Vou baixar a
temperatura do condicionador de ar.
Ela o fez e voltou ao horizonte
que não estava lá. Suas lembranças vagavam mais uma vez. Estava ansiosa pelo
parto. Seu filhote, como ela chamava, estava chegando.
O sol marcava em seu ponteiro
invisível oito horas da manhã. Viera bem quente aquele dia, mais que o normal.
Oscar dirigia rapidamente, pois
não havia trânsito e a estrada estava boa. Estava agora numa descida, para em
seguida subir à direita. Ele diminuiu a velocidade. Porém o que ele não
esperava era que dois carros viessem na pista, incluindo a via em que ele trafegava.
Havia um carro branco e um outro, vermelho. O carro vermelho era o que invadira
a via de Oscar, tentando fazer uma ultrapassagem. Estavam muito rápidos. A única
coisa em que Oscar pensou foi em jogar o carro para o acostamento, porém o
carro vermelho teve a mesma ideia. O inevitável aconteceu. O carro vermelho
tentou voltar para a pista ao perceber que o carro de Oscar se direcionava para
o acostamento, porém já era tarde. A frente do carro vermelho pegou todo o lado
direito do carro de Oscar. O impacto lançou os dois carros em direções
diferentes, num capotamento horrível. O carro de Oscar tomou altura e rodopiou
sobre si mesmo quatro vezes, caindo em pé. Enquanto o outro saiu cantando pneu
girando na pista, se perdendo depois no canavial.
Logo se juntaram outros carros na
via. O chão estava todo cheio de pedaços dos dois carros. Várias pessoas
tiravam seus celulares para ligar para a polícia, outros gravavam a cena.
Quando a polícia e os bombeiros
chegaram encontraram muitos curiosos. Fecharam a via e trataram dos envolvidos
no acidente, no caso três. O homem que dirigia o carro vermelho estava bem.
Porém mostrando sinais claros de embriaguez. Havia somente tido um arranhão na
testa. Recusava-se a fazer o teste do bafômetro. Do outro lado um dos bombeiros
conseguia retirar a porta do passageiro, os paramédicos tentavam ver se a
criança na barriga da mulher ainda estava viva. Os bombeiros retiravam da cena
um homem coberto por um saco preto. A gestante estava presa no carro, mas
desacordada. Um paramédico olhou para o outro e meneou a cabeça em negativa, a
criança não tinha batimentos. Só restava retirar a mulher do carro e levá-la
para um hospital imediatamente, para retirada da criança, agora morta.
Susana acordou no hospital, cheia
de tubos, sentindo sua barriga mais leve. Num momento foi atacada pelo
desespero.
- Enfermeira! Enfermeira!
Uma das enfermeiras entrou.
- O que aconteceu? Cadê meu
filho? Cadê meu marido? – seus olhos estavam cheios de lágrimas, sua boca
tremia.
- Senhora, acalma-se.
- O que houve? – perguntou
enquanto apertava o cabelo.
- Uma pessoa virá conversar com a
senhora, aguarde.
- Meu Deus, cadê meu filho? Onde
ele está? Está bem? Ele está bem? Onde ele está? Traz ele pra mim, por favor...
- seu desespero era notório. Seus olhos se apertavam e traziam mais lágrimas e
suas mãos se enlaçavam. – Cadê meu filho? – a palavra filho era mais
extensamente falada, enquanto o choro tomava conta de sua boca.
- Senhora, só mais um momento,
uma pessoa lhe dará todas as respostas. – disse a enfermeira, condoída com a
situação.
Dois minutos depois chegava ao
quarto a mãe de Susana.
- Mãe. – disse Susana em prantos.
– Por que ninguém quer me falar do Oscar? E cadê meu bebê?
- Filha, – dona Luzia tentava
respirar e parecer forte, mas a sua voz trêmula a denunciava. – houve um
acidente horrível. Oscar e meu neto... não podem mais...voltar.
Dona Luzia somente confirmou o
que Susana pensava. Mas depois que ela disse aquelas palavras...Susana não
agüentou. Todas as forças que haviam dentro de si foram gastas num choro
inconsolável, num acesso de grito, e na quebra de um vaso que estava ao lado de
sua cama. Em seguida Susana se sentou no cantinho do quarto, abraçou suas
pernas e chorou.
- Por quê?
Dona Luzia não sabia o que dizer.
Apenas chegou perto da filha e a abraçou. Não era a primeira vez que perdia
alguém importante, mas não dá pra se acostumar com a morte de um ente querido.
É uma daquelas coisas que as pessoas falam para sermos fortes, que tudo vai
passar, mas não passa. Nunca passa. A memória que temos de alguém que a gente
ama nunca sai.
É difícil recomeçar, mas Susana
ainda tinha sua mãe. O tempo foi passando e ela não podia se esquecer daquelas
duas pessoas que tanto amou em vida. Quando via as fotos ficava um vídeo em sua
mente rodando e rodando e rodando. Ficou muito tempo sem querer lembrar-se do
filho ou do marido, mas não dá. É impossível. Como uma história tão linda, teve
um final tão repentino e trágico? Sempre acontece.
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