[Conto] A Lembrança


            A vida não é lógica. Ele percebeu isso fazia tempo. E sempre nas mesmas situações tentou usar a lógica, a exatidão de um caminho. Mas falhou em todas elas. Decidiu por impulso que queria se casar. Mas primeiro teria que conseguir emprego. Conseguido o primeiro passo foi para o segundo. Casou-se. E a seguir veio o filho. Casa, carro, móveis. Era feliz. Mas teve um momento em que discutiu com sua mulher. E separaram-se. "Triste fim", pensava. "Tanto trabalho para nada". O jeito era recomeçar. Ficar parado vendo o tempo passar não era do seu feitio. E começou a gostar do seu trabalho na empresa. Estudou, e algum tempo depois conseguiu uma promoção. Um cargo ao qual não almejava enquanto casado. Mas como estava divorciado mesmo aceitou-o e em pouco tempo comprou uma casa (a outra dera à sua ex-mulher, assim como seu carro). Comprou um carro, encheu a casa de coisas que vende-se em televisão, eletros e eletrônicos dos quais a metade nunca nem usara. Alguns meses se passaram, alguns anos também. E um certo dia, depois de um expediente cansativo, levou-se ao restaurante que sempre ia com sua ex-mulher. Adorava aquele lugar e tinha anos que lá não comparecia. "Matar a saudade."

            Lá chegando procurou a mesa que sempre usava. E para sua surpresa estava sua ex-mulher e seu filho, jantando.

            Ficou um tempo admirando a cena, escondido. E lembrando-se dos tempos bons que passaram juntos. Desejava ter uma família de novo. Abriria mão de tudo que conseguira para ficar junto deles. Não pôde se conter e foi à mesa em que estavam. Acanhado, sem graça, disse um "oi". E o seu "oi" foi correspondido por um abraço caloroso do seu filho. "Que bom que o senhor está aqui, papai." A ex estava meio constrangida, meio feliz. Um misto de leite frio com café quente. Ela o convidou a sentar-se. Ele o fez. O garoto já com sete anos contou suas peripécias na escola, suas amizades, sua paquera. O homem estava feliz, mas não estava à vontade, sentia-se um estranho invadindo um mundo novo, entretanto de certa forma conhecido.

            Conversaram, riram, riram de si mesmos. A noite ia se acabando. Ela tinha que ir, trabalhava cedo. Ele ofereceu carona. Ela aceitou, assim como o garoto. Pareciam uma família. No fundo eram. Ela lhe disse onde parar. Parou. O garoto desceu, ela ficou. Ele ficou sem jeito, procurando no carro algo que não sabia o que era. Ela lhe disse: Sentimos sua falta. Ele parou de procurar. Sério. Olhou nos olhos dela. Ela os dele, candidamente. Os olhos dele diziam "eu também", os dela diziam "fique conosco". Mas a boca dele disse: Eu preciso ir. Ela desceu. Com a maior dor do mundo. Ele se foi, com a mesma intensidade da dor dela. Tentando se lembrar o porque se separaram. E por mais que procurassem juntos eles não encontravam a lembrança, o motivo.

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