[Conto] O Lago
Quando eu tinha oito anos, meu irmão mais velho disse que quando a gente morre nossa alma ficava presa no lago que ficava em frente à nossa casa. Eu sempre ficava admirando o lago. Que segredos havia lá no fundo? O que os mortos tinham para fazer lá? Será que eles comiam os peixes? Será que algum pescador um dia fisgara uma alma?
Eu vivia assustado com a possibilidade de encontrar algum fugitivo do lago. Quem sabe ele não buscaria vingança e a primeira pessoa que estivesse a passar ele pegasse como culpado, como se fosse um juiz em busca da justiça? Mas talvez ele julgasse errado e nem percebesse. Ou então estar morto significasse a perda da consciência e não poder discernir o que era certo do que era errado.
Eram medos pueris. Mas nunca pus os pés nas águas daquele lago. Porém chegou um dia em que o encarei como se quisesse que ele devolvesse o que não lhe pertencia: meu irmão. Lucas morrera atropelado no dia em que completava 15 anos. Eu tinha meus 11. Era meu único irmão. Chorei amargamente, como se fosse o único modo de expor toda a solidão fraterna que estava por vir. Não podia aceitar que meu irmão tivesse um fim tão trágico. Ele não merecia. Agora que estava prestes a dizer a Susana que estava enamorado dela. No dia que decidira no seu íntimo que era o momento apropriado de dizer que carregava em seu coração uma emoção que ninguém antes lhe tivera despertado, perdera a vida.
Mamãe não entendia porque eu sempre olhava o lago pela janela do quarto. Mamãe sentiu muito a dor pela partida de Lucas. Era como se lhe tirassem um pedaço dela. Ela estava triste pela morte do primogênito, mas não deveria se apegar à dor suficientemente a ponto de se esquecer dos afazeres domésticos. A vida tinha que continuar. Ela não foi tão boa em seguir com a vida. Todavia eu estava decidido a resgatar meu irmão. Eu agora não tinha com quem conversar. Não tinha com quem brincar. Não havia mais brigas de irmãos, nem cumplicidade, nem conivência. Eu tinha que salvá-lo.
E foi numa sexta-feira normal, num dia de sol completamente não-singular que decidi: tenho que entrar lá. Peguei meu pequeno canivete suíço (mamãe não tinha ciência da existência dele), o barquinho que jazia preso num tronco de árvore, e parti rumo ao salvamento. No meio do lago fiquei procurando o Lucas. Olhando, tentando penetrar no fundo, será que ele estaria no meio mesmo? Baixei a cabeça a fim de ver melhor, espremendo os olhos. Foi quando o barco virou. Foi melhor, agora podia nadar até o fundo e procurá-lo. Nadando, descendo, fundo...
Fui descendo, invadido pelo pensamento de que estava prestes a reencontrar meu irmão, que nem percebi, nem me preocupei em guardar fôlego para retornar à superfície. Não conseguia ver o fundo, mas depois de uns segundos comecei a perceber uma pequena luz branca que progredia de baixo. E essa luz foi crescendo. Quando estava prestes a tocar nela, faltou-me o fôlego. Comecei a me debater dentro do lago, e tentei em vão retornar pra cima. Era tarde. Quando tentei começar a nadar, uma mão me puxou para o fundo. Depois disso não me lembro de nada.
Eu podia ver minha mãe me procurando. Chamando meu nome. Adentrando em meus esconderijos secretos, acho que não eram tão secretos assim pra ela. Nada. Comecei a gritar:
- Mãe, estou aqui!
Comecei a correr em direção a ela, por cima das águas do lago. Ela não me viu.
- Mãe, aqui!!!- gritei a plenos pulmões.
Corria o mais rapidamente possível, e me surpreendi ao me dar conta de que corria por cima das águas. Com toda a velocidade cheguei até ela e a abracei. Parecia que ela não me sentia. Mesmo eu ao seu lado ela ainda me chamava, olhando para outras direções.
- Mãe.
Não conseguia ver seu rosto. Então me esforcei para ver melhor. E quando consegui me assustei. Minha mãe tinha o rosto de uma caveira. Acordei, arfante. Era um sonho? Credo, que pesadelo, isso sim. Tão assustado com o que havia visto nem percebi onde estava.
Depois de uns instantes fui perceber que estava dentro do lago. Mas me parecia uma cidade normal. Pessoas andavam de um lado para o outro. Cada um com seus afazeres. Não sabia que as almas tinham uma vida social. Mas o momento que mais me alegrou foi quando vi Lucas. Fiquei muito feliz. Corri para seus braços.
– Lucas!!! Que bom que te achei, irmão. Precisamos voltar. A casa não é a mesma sem você. Sinto tanto sua falta, já chorei tanto, irmão. Mamãe não consegue fazer as coisas direito. Tenho estado tão triste, como se faltasse um pedaço de mim.
Comecei a perceber que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Talvez feliz por me ver também. Ele me olhou como quem dissesse: por que você está aqui?
– O que houve irmão? Não está feliz em me ver?
– Não é isso. Estou, mas... como você chegou aqui?
– Ah, eu sabia que você estava aqui, e você estava certo quando disse que as almas vinham para cá. Eu peguei o nosso barquinho e fui para o meio do lago. Tentei te achar, mas aí o barco virou e eu decidi nadar até o fundo. E então apareci aqui.
– Mas...
Ele começou a chorar alto. Parecia que lhe moíam por dentro. Ele me abraçou fortemente e disse:
- Irmão, você morreu.
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