[Conto] O Judeu


O ano é 1940. Estou num cubículo com outros 20 homens, um pequeno quarto com beliches, sujo, outro dia vi ratos. O ambiente é denso. Estou aqui há cerca de vinte dias. Estamos presos. Há dois guardas que vigiam a entrada, estão armados. Usamos um uniforme listrado. Cada dia que passa está ficando mais difícil, não consigo parar de pensar na minha família. A dor da saudade está crescendo diariamente. Elas estão em outro alojamento, um feminino, acho que em outra cidade.

            Pela manhã quebramos pedras, acorrentados. E à noite somos postos aqui neste quarto, aos empurrões, sempre ameaçados por pistolas. Não consigo dormir neste momento. Agora há pouco estava encostado na única janela que existe, a única passagem de ar que temos. Uma grade. Estava olhando as estrelas. Lindas. Inúmeros pontos brilhantes que dançavam no céu. Livres. Estamos aqui porque somos judeus. Contudo não somos só judeus, também tem dois homossexuais e sete ciganos. Mas olhando bem ninguém diria que somos diferentes. Somos homens em cativeiro, nenhum melhor do que o outro. Apenas homens com seus sonhos, que se perderam de suas famílias. Por algum motivo fútil. Carpinteiros, relojoeiros, comerciantes, mendigos. Ainda não sei por que estou aqui. Entretanto sinto que o fim se aproxima. Já há alguns que perderam a esperança, e eu, minha fé. Outro dia vi um soldado atirar na cabeça de um homem velho, só porque este não tinha mais forças para quebrar pedra. Mas não foi o primeiro. Um outro rapaz, cuja perna estava machucada, andava cambaleando. Um dos soldados que passava pediu que levantasse a perna da calça, e ao levantar foi constatada uma grave infecção. Fiquei observando, pensei que o soldado o levaria para alguma enfermaria. Não. Ele o levou para trás de um alojamento e deu dois tiros no homem ferido. E depois me chamou para levar o corpo para um grande buraco, onde havia vários corpos, vítimas de uma crueldade sem precedentes.

            Lembro-me das histórias que meu pai contava à noite, no meu quarto quando era criança. Ele dizia que éramos o povo escolhido por Deus, éramos um povo especial, uma raça eleita. Dizia que Deus livrara a nação de Israel sempre que havia algo errado. Uma das histórias que mais gostei foi de Sansão. Ele dizia que Sansão era um super-homem, que havia derrotado cerca de trezentos homens em um só dia. Nossa! E também que já havia matado um leão! Se Sansão estivesse aqui, tudo seria diferente. Queria ver com que coragem estes homens que estão aí fora reagiriam. Queria ver Sansão derrotar todos eles. Mas estamos sós. Não há sansão ou Davi aqui. Só nós, homens, fracos, famintos e sozinhos com nossos medos.

            Fico me lembrando do dia em que encontrei Sara, minha esposa. Ela estava tão linda e feliz. Estávamos prometidos por nossos pais. Ela gostou de mim e eu dela. Casamo-nos segundo a tradição judaica. Depois de um ano veio Maren, nossa única filha. Nossa felicidade. Sete anos depois, estávamos em Gersburg, em visita a um tio meu, quando os soldados pegaram nossas malas, jogaram no chão nossas roupas, sacaram meu documento e viram que eu era judeu. Bruscamente nos separaram. Lembro-me do choro e dos gritos de Maren e do olhar triste de Sara, os soldados nos apartando.

            Eu não quero que meus olhos lacrimejem, contudo parece que é o único jeito de expor toda a consternação que existe dentro de mim. Meu corpo dói, meus olhos falham, minhas mãos calejadas tremem. Meu corpo está em sequidão, consigo sentir meus ossos. Temos muita fome. Os soldados que nos vigiam sempre colocam uma ração para comermos, mas não é o bastante, faltam nutrientes. Outro dia, ó meu Deus, vi o Saul comer um rato. Todos tivemos nojo, mas compartilhamos do anseio de participar da ceia de Saul. Ó, Jeová! Onde estais? Por que não nos tira a vida logo? Por que nos deixa neste sofrimento? Já nem sei.

Não vejo a hora de virem aqui e atirar em todos. Mas temo. Ansiava mesmo era sumir daqui e pegar minha mulher e filha e ir para um lugar de descanso, um lugar de paz. Aqui é o inferno. Todos dormem, mas continuo divagando. Minha mente fica zanzando, procurando um silêncio. Os cachorros sempre latem, e de hora em hora um soldado bate seu cassetete na porta de alumínio. Acordando todos. O som é ensurdecedor. Somos tratados como cachorros, como a escória da humanidade. Oro para que isso acabe logo. Fugir não é possível. Há uma grande cerca ao redor. Talvez amanhã seja meu último dia de vida e tudo se acabe na ausência da dor, na ausência da fome, na ausência do som.

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