[Conto] A Visita

A garota entrou no cemitério. Usava um casacão marrom, fazia muito frio aquele dia. Era um daqueles últimos dias de inverno. Faltava pouco para a primavera. Eram dez da manhã. O céu estava límpido e majestosamente azul. A garota seguiu a trilha que daria num túmulo conhecido. Passos vagarosos, não tinha pressa alguma, o outro podia esperar uma eternidade. Cabeça baixa, mãos nos bolsos. Chegou ao destino. A foto ao lado da lápide era composta por um casal e uma garotinha, que era ela. Ali estavam seu pai e sua mãe, num momento bom, todavia já muito distante. Na lápide estava escrito em letras garrafais:

Amado esposo
Amado pai
Amado filho

Havia um mês que o corpo do seu pai estava ali depositado.
Ela se aproximou mais, sentou-se no chão, numa grama verde bem cortada. Recostou-se no túmulo. Cabisbaixa.
- Pai, como vai?

A falta de resposta fez com que ela criasse uma:
- Estou bem filha, somente com frio.
- Eu estava me lembrando ontem de coisas que fizemos juntos.

Seus olhos se encheram de lágrimas. Ergueu a cabeça na tentativa de fazer com que a lágrima retornasse ao seu ponto de origem. Não intentava deixá-la escapar. Teve sorte, ela voltou. Olhou para a foto do pai e prosseguiu:
- Estava ouvindo aquela canção que eu gostava quando pequena. Você sempre cantava ela para mim. Lembra? Você era muito desafinado. - sorriu um riso triste - Mas eu deixava você continuar a canção, pois você achava-a bonita, e gostava de cantá-la para mim. Pai, ontem eu comprei uma passagem para a Grécia. Você sempre falava dela para mim, dos seus mitos, de sua história, da sua vontade de um dia conhecê-la. Vou viajar semana que vem. Mamãe acha que estou louca.
- Que bom filha, aproveita por nós, então.

A garota subitamente colocou as duas mãos cobrindo o rosto e começou a chorar. O choro outrora contido se mostrou forte e pesaroso. Ao que parecia, havia dias que ela segurava aquela dor. E agora já não havia vigor para refreá-la.
- Por que você me deixou, pai? - perguntou chorando, num misto de raiva e inconformidade. - Você me disse que sempre estaria aqui quando trovoasse. Disse que nunca iria me deixar só. Hoje estou só, e onde está você?
- Aqui, filha.
- Antes de dormir, você sempre vinha me abraçar. Dizia que se eu tivesse um pesadelo e acordasse à noite, era só dizer seu nome, que viria correndo. Sempre foi assim, como disse, mas ontem, quando gritei, você não veio ao meu socorro. - Baixou a cabeça, tentando se recompor.

Levantou-se. Cruzou os braços para tentar se aquecer mais. Passos iam e vinham ao redor do túmulo.
- Você nunca foi bom de piada. Me lembro do seu riso tentando contar uma para a mamãe Ela ria para não te deixar sem graça - a garota riu. Você era desengonçado e se perdia no meio da piada, ria antes de terminar. Ai, pai, você era engraçado, mas não do jeito que queria.
- Isso é novidade.
- Queria poder ter dito o quanto te amava, pai. Será que sentia isso? Nunca fui boa em retribuir. Tem vezes que fico pensando se fui uma boa filha para você. Será que fui?
- Foi a melhor que um pai poderia ter.

Sentou-se novamente, como que desabando no chão. Seu humor estava muito instável, ora ria, ora chorava.
- Sinto tanta falta do teu abraço, pai. - começou a chorar.

A voz embargada, carregada de lágrimas tentava exprimir alguma coisa, mas ela balbuciou apenas.
- Queria que ainda estivesse vivo. Me sinto perdida nesse mundo tão grande e sem alguém com sua força para me guiar...tanta saudade...tanta...
- Filha, você tem que ser forte.

A garota abraçou as pernas, não sei se era o frio exterior ou o interior. Pegou a bolsa que carregava e retirou de lá algo que parecia ser uma carta.
- Pai, eu escrevi algo para você. Quer ouvir?
- Claro, filha.

"Querido pai, esta é uma carta para você, estou escrevendo para não esquecer de nada quando for te visitar. Encontrei seu diário. Tinha muita coisa sobre mim lá. Desde quando nasci, até um mês atrás. Percebi que você sempre tentou fazer com que eu fosse precoce na escrita. Lá no diário estava escrito que você lia para mim desde a barriga da mamãe, você disse até que ela dormia ouvindo. Encontrei um livro seu. São poemas e contos. Um livro. Por que nunca publicou, papai? Eu li tudo em um dia, sentindo falta da sua voz eu acabei lendo ouvindo você me contar, era como se ainda estivesse lá, contando uma história, como quando eu era pequena. Meu espírito está em frangalhos, sinto sua falta cada dia que passa, na esperança de que você volte. Como não vi seu corpo, eu acredito que você não morreu. Apenas fez uma longa viagem, e vai voltar pra mim e pra mamãe.

"Vou parar de dizer que sinto sua falta. Já deve estar bem claro que a casa ficou vazia. A alegria se foi quando você não entrou mais por aquela porta. Quando a cor e a vida chegavam, quando o seu boa noite era correspondido por um longo abraço, como se não nos víssemos havia uma vida. Você era meu melhor amigo. É. Ainda vive aqui dentro de mim.

"Disseram para eu seguir, deixar de ficar triste e recomeçar a rir. Rir de quê? Esse momento é seu, essa tristeza é dedicada a você. Eu quero viver esse momento. Esse é o símbolo da partida. Eu quero ficar triste até não ter mais lágrimas em mim. Não quero começar a rir de novo, não agora. Eu quero pensar mais um pouco em você. Antes do seu rosto se apagar dentro de mim.

"Todos tentam me consolar. Mas percebo que usam frases fabricadas pelo tempo. Frases feitas. Nenhuma me soa sincera. Ninguém veio apenas para me abraçar, sem palavras. Eram abraços fracos, sem vontade, sem sinceridade, seguidos de um 'sinto muito', 'eu lamento'. Eu queria apenas...nem sei. Queria que ainda estivesse aqui, só isso.

"Cada dia é difícil. Mamãe está um pouco melhor, tentando se erguer. Ela é mais forte que eu. Minhas tias vêm de dois em dois dias, para saber como ela está. Ela diz que está tudo bem, mas ouço ela chorando à noite. Acho que ainda querendo que o lado oposto ao que ela dorme da cama estivesse quente. Mas não está.

"Papai vou tentar fazer uma viagem, para me levantar, uma viagem dedicada a você. Vou para a Grécia. Estão todos assustados, têm medo de que eu fuja. Mas sou maior de idade, sei das minhas responsabilidades, sei que não vou me matar ou fugir, apesar de acharem que sim. Mamãe aceitou, ela confia em mim. Eu disse que era uma homenagem a você. Vou tirar fotos e gravar vídeos de lá. Vou subir na Acrópole. Visitar ruínas. Dizem que as praias são maravilhosas. Vou trazer uma lembrança para você, prometo.

"Agora já vou. Estarei sempre aqui, caso queira conversar. Beijos, pai. Te amo, jura-juradinho, eternamente ligados. "

- Foi o que consegui escrever.
- Ficou muito bom, adorei, filha.
- Queria ouvir sua voz só mais uma vez. A tua voz gravada em vídeo não é a mesma coisa daquela aveludada. Daquela voz terna e confiante. Daquela voz que me embalava no sono. Que me acordava de manhã para o colégio. Que me impulsionava a dar o melhor de mim.

A garota se afastou, pensou um pouco em tudo que vivera com o pai. Decidiu que era hora de ir.
- Pai, eu já vou. Daqui a um mês eu volto e trago as fotos.
- Tudo bem.
- Te amo muito.

A garota ajeitou o cabelo que caía no rosto. Beijou a ponta dos dedos e encostou-a na foto que tinha a imagem dos três. Disse sem voz um tchau. Virou-se e começou a ir embora. Um vento mais forte veio ao seu encontro e cochichou no seu ouvido, levantando seu cabelo:
- Te amo, também, filha.

A garota riu, entendendo que seu pai lhe falara através do vento. Virou as costas e saiu sorrindo. Por fim percebera que o momento de tristeza e choro havia sido encerrado. Havia chegado a momento de sorrir de novo.

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