Projeto de um Livro: Perinos
Capítulo 1
O cortejo fúnebre cortava a cidade, atraindo olhares melancólicos e curiosos. As carpideiras efeutavam seu trabalho com maestria. Choros longos e constantes criando até uma certa melodia gostosa com os tons diferentes que cada uma emitia. Praticamente uma ópera. Os participantes caminhavam com seus óculos escuros, segurando as mãos daqueles que não conseguiam reprimir suas dores. Abraçando aqueles mais fingidos que estavam loucos para representar um desmaio. Porém ninguém de fato se atreveu a isso. Ninguém intentava roubar a cena do morto, a última cena dele não poderia ser perturbada por um desmaio fajuto. Muitos aparentemente traduziam em suas bocas e trejeitos o respeito que se devia ao patriarca da família Mendes. Nessas horas todo morto é santo, seus pecados são lavados e ninguém ousa falar mal.
Apesar de discordarem em conversas de boteco sobre a mão de ferro com que Bartolomeu Mendes regia sua cidade, neste momento eram coniventes com a caminhada dolorosa. Era o último de uma geração que viu Perinos nascer. À frente do cortejo estavam os dois filhos de Bartô, como era carinhosamente chamado o patriarca: Bastin e Martin. Eles eram casados com Minaflor e Reijene, respectivamente. Na passeata, na hora mais apropriada para um belo banho de sol, um sol de rachar mostrando a todos a sua força de meio-dia, todos estavam de terno e vestidos preto. Algumas mulheres com véu secando lágrimas que não vinham. Os filhos guardando no íntimo do ser a vontade de conhecer quem ficaria com que parte da herança. Curiosos para saber o que seu pai reservara para eles durante esses trinta anos guardando sapos, e engolindo em seco cada mando e desmando de Bartô. Não tinham filhos, parece até que combinavam, o velho odiava criança. E Martin e Bastin não tinham intenção de futuramente pagar uma pensão alimentícia. Dona Carmela, a viúva de um general, era a única que chorava de verdade por dentro e por fora. Tratava-se de um amor passado de Bartô, um amor proibido pelo pai dela, que descanseem paz. Quando jovem ela e Bartô intentaram fugir da cidade, sem sucesso. Ela estava prometida para o futuro coronel Tonho. E não teve como fugir do destino que seu pai criara. Ela derramava lágrimas copiosamente pelo único homem que amou na vida...
O prefeito, um homem interesseiro, meio pançudo, baixinho, de bigode com pontas para cima, com toda dedicação ao amigo de ciladas morto, mandou chamar o melhor padre de funeral que existia no estado. Um clérigo digno de pompa. Era um exímio verborrágico de assuntos da salvação. Sabia transformar a aparência de um homem podreem vinho. O cenário já estava preparado. Tínhamos o morto, os filhos, as noras, um amor perdido no tempo, o prefeito, o padre e pessoas de segundo plano no local. Tempo e espaço preparados para dar seu adeus a um homem que poderia passar despercebido, não fosse seus segredos em relação à cidade e aos seus mais próximos. Segredos que estavam melhor guardado agora com ele a poucos passos de sete palmos.
Chegaram ao cemitério. Um grande campo verde com lápides brancas rodeadas por coroas de flores. Muita história estava enterrada ali. O prefeito dedicara muitos valores dos cofres públicos para concretizar esta bela obra. No centro do cemitério havia uma grande estátua do símbolo da cidade: o Bode. Deitaram o caixão no chão. Coveiro a postos. As pessoas inquietas desejando que aquilo terminasse logo, para que pudessem voltar aos seus afazeres. Os filhos se olhavam. Nenhuma palavra. Carpideirasem silêncio. O vento era a única canção que entoava por entre as gentes. Uma pessoa se levantou do meio da trupe que vinha atrás e gritou um poema:
Jaz cedo este homem
Que tanto amou e sofreu
Jaz cedo senhor Bartô
Pois teu corpo morreu.
Se não tivera história
Enterrado eras como indigente
Mas tuas cãs dizem mais
Do que somada toda esta gente.
O senhor era um pai, um irmão, um filho
Para a cidade que criara já não te sobra dia
A ceifeira do demo te toma, contra vontade
Vais cedo, Bartô, quem diria?
Pensávamos que eterno fosse
O último de uma geração criadora
Saudades deixas amigo, meu peito dói.
E não há cura auxiliadora.
Este é meu último repente para ti
Não fazes mais parte desta esfera
Digno eras de fogos e tiros
Vais Bartô, o descanso te espera...
Se o silêncio de antes era decoroso, o que veio a seguir era assustador. Era possível ouvir o bater do coração do morto, se ainda estivesse vivo. O prefeito estava preocupado. Onde havia se metido o homem a quem pagara cifrões em demasia? Onde estava o padre eloqüente? Todos já tinham ouvido falar da chegada desse padre e do seu objetivo, fofoca corre como gota de chuva caindo. Entreolhavam-se. E por fim o mais velho do morto questionou:
- Cadê o padre?
Capítulo 2
Algumas décadas atrás.
O garoto corria desesperadamente, intentando se esconder de Paulinho que já estava chegando no trinta. Bartô acabou se escondendo no quarto dos pais. Depois de meia-hora Paulinho já havia encontrado quase todos. Faltava somente um: Bartô. O casarão com sete quartos era quase um labirinto. O pai de Bartô recebia muitas visitas e vez ou outra essas visitas pernoitavam no casarão. Os outros quatro garotos foram facilmente encontrados, mas Bartô era difícil. Sempre era o último. E normalmente aparecia com um: - Um, dois, três, salvo todos! E todos se livravam de contar. Os garotos já estavam bastante cansados. Eram umas 18h. Gritaram para Bartô aparecer, pois a brincadeira acabara. Mas Bartô estava longe do alcance dos gritos. Estava escondido dentro do guarda-roupa da mãe, debaixo de uma coberta grossa. Os gritos eram sufocados pela porta e pela coberta. Ficou ali, esperando.
A mãe de Bartô sabia que seu Leôncio, o pai, chegaria tarde este dia.
Os garotos já estavam em suas casas. A campainha soou. A mãe de Bartô foi atender. Era Fausto.
- Ele não está. Entra logo.
- E seu filho?
- Está quieto demais, deve estar dormindo, vamos logo para o quarto.
- Sua danadinha, sentiu saudades?
- Estou queimando de saudades. Vamos! – disse a senhora Mendes beijando Fausto e encaminhando-o para o quarto principal.
Subiram desesperadamente a escada e logo estavam no quarto. Tiraram as roupas e entregaram-se à paixão que não podia ser refreada. O garoto Bartô já estava cansado, iria desistir da brincadeira, tirou o cobertor de cima de si e abriu devagar a porta do guarda-roupa.
A cena que viu nunca mais lhe sairia da mente.
Sua mãe...a pessoa em quem mais confiava, com outro homem no lugar que era de seu pai. Aquilo estava errado. Ficou ali, durante vários minutos ouvindo os gemidos e urros da sua mãe. Aquilo o matava, aquilo lhe fazia crescer uma fúria sem tamanho. Mas conteve-se.
Bartô abriu os olhos, lembrando-se desse momento terrível. Naquele dia ele deixou de dar crédito à palavra confiança. Nunca pode ser feliz, entregar-se à uma relação ou ao carinho dos filhos, ou ao abraço dos amigos. No mundo não se tinha amigos. Era um monte de gente interesseira, doida pra te ver no chão. Loucos para tirar tudo que te faz feliz. Qualquer sorriso que se lhe fizesse no rosto logo era roubado. Bartô não acreditava nas pessoas.
Fechou os olhos e lembrou-se do dia que seu pai descobriu a farsa. Descobriu o teatro que sua esposa criara, fazendo dele um palhaço, humilhando-o como homem. Seu pai chegou mais cedo em casa e foi direto para o quarto ansioso para ver a amada. Mas no fim viu a mesma cena que Bartôzinho. Leôncio já não tinha forças para suportar as cobranças da empresa, não tinha como pagar a hipoteca da casa e viviam de aparência um luxo que só existia na cabeça da senhora Mendes. E agora recebera a facada final, justo da pessoa que mais amava no mundo.
No dia seguinte, durante o jantar, seu pai elogiou a comida, perguntou como Bartôzinho estava na escola, como foi o dia de Dona Mendes. Depois de ouvido tudo o que tinham pra dizer, Leôncio foi ao quarto, pegou algo lá, desceu as escadas, sentou-se à mesa. Esposa e filho olhavam o dono da casa inquisitoriamente.
- Espero que vocês sejam felizes sem mim. – disse Leôncio.
Retirou um revólver do bolso e pipocou na têmpora direita.
Bartô se lembra de tudo tão vivamente, constante em sua memória, todos os detalhes daquele dia fatídico. Ficaram atônitos. Não tiveram reação nem para gritar. Ficaram observando o corpo de Fausto pender para o lado esquerdo. Caindo no chão. Bartôzinho olhou sua mãe. “Você é a culpada!”
- Meu Deus! – balbuciou a mulher com as mãos à boca.
Depois do choque, da polícia, do enterro, sua mãe se casou, dois meses depois, com Fausto. E este acabou pagando as dívidas da família Mendes, ou o que restava dela. Levou Bartôzinho para as melhores escolas do estado. O já velho Bartolomeu se lembrava agora que tudo aquilo, não renderia lucros ou rendimentos para Fausto. Bartô estava dando princípio ao seu próprio cavalo-de-tróia. Sem que se percebesse, ele bolou um plano tão bem feito que não tinha como errar. Criou o assassinato de sua mãe e de seu padrasto.
Apesar de discordarem em conversas de boteco sobre a mão de ferro com que Bartolomeu Mendes regia sua cidade, neste momento eram coniventes com a caminhada dolorosa. Era o último de uma geração que viu Perinos nascer. À frente do cortejo estavam os dois filhos de Bartô, como era carinhosamente chamado o patriarca: Bastin e Martin. Eles eram casados com Minaflor e Reijene, respectivamente. Na passeata, na hora mais apropriada para um belo banho de sol, um sol de rachar mostrando a todos a sua força de meio-dia, todos estavam de terno e vestidos preto. Algumas mulheres com véu secando lágrimas que não vinham. Os filhos guardando no íntimo do ser a vontade de conhecer quem ficaria com que parte da herança. Curiosos para saber o que seu pai reservara para eles durante esses trinta anos guardando sapos, e engolindo em seco cada mando e desmando de Bartô. Não tinham filhos, parece até que combinavam, o velho odiava criança. E Martin e Bastin não tinham intenção de futuramente pagar uma pensão alimentícia. Dona Carmela, a viúva de um general, era a única que chorava de verdade por dentro e por fora. Tratava-se de um amor passado de Bartô, um amor proibido pelo pai dela, que descanse
O prefeito, um homem interesseiro, meio pançudo, baixinho, de bigode com pontas para cima, com toda dedicação ao amigo de ciladas morto, mandou chamar o melhor padre de funeral que existia no estado. Um clérigo digno de pompa. Era um exímio verborrágico de assuntos da salvação. Sabia transformar a aparência de um homem podre
Chegaram ao cemitério. Um grande campo verde com lápides brancas rodeadas por coroas de flores. Muita história estava enterrada ali. O prefeito dedicara muitos valores dos cofres públicos para concretizar esta bela obra. No centro do cemitério havia uma grande estátua do símbolo da cidade: o Bode. Deitaram o caixão no chão. Coveiro a postos. As pessoas inquietas desejando que aquilo terminasse logo, para que pudessem voltar aos seus afazeres. Os filhos se olhavam. Nenhuma palavra. Carpideiras
Jaz cedo este homem
Que tanto amou e sofreu
Jaz cedo senhor Bartô
Pois teu corpo morreu.
Se não tivera história
Enterrado eras como indigente
Mas tuas cãs dizem mais
Do que somada toda esta gente.
O senhor era um pai, um irmão, um filho
Para a cidade que criara já não te sobra dia
A ceifeira do demo te toma, contra vontade
Vais cedo, Bartô, quem diria?
Pensávamos que eterno fosse
O último de uma geração criadora
Saudades deixas amigo, meu peito dói.
E não há cura auxiliadora.
Este é meu último repente para ti
Não fazes mais parte desta esfera
Digno eras de fogos e tiros
Vais Bartô, o descanso te espera...
Se o silêncio de antes era decoroso, o que veio a seguir era assustador. Era possível ouvir o bater do coração do morto, se ainda estivesse vivo. O prefeito estava preocupado. Onde havia se metido o homem a quem pagara cifrões em demasia? Onde estava o padre eloqüente? Todos já tinham ouvido falar da chegada desse padre e do seu objetivo, fofoca corre como gota de chuva caindo. Entreolhavam-se. E por fim o mais velho do morto questionou:
- Cadê o padre?
Capítulo 2
Algumas décadas atrás.
O garoto corria desesperadamente, intentando se esconder de Paulinho que já estava chegando no trinta. Bartô acabou se escondendo no quarto dos pais. Depois de meia-hora Paulinho já havia encontrado quase todos. Faltava somente um: Bartô. O casarão com sete quartos era quase um labirinto. O pai de Bartô recebia muitas visitas e vez ou outra essas visitas pernoitavam no casarão. Os outros quatro garotos foram facilmente encontrados, mas Bartô era difícil. Sempre era o último. E normalmente aparecia com um: - Um, dois, três, salvo todos! E todos se livravam de contar. Os garotos já estavam bastante cansados. Eram umas 18h. Gritaram para Bartô aparecer, pois a brincadeira acabara. Mas Bartô estava longe do alcance dos gritos. Estava escondido dentro do guarda-roupa da mãe, debaixo de uma coberta grossa. Os gritos eram sufocados pela porta e pela coberta. Ficou ali, esperando.
A mãe de Bartô sabia que seu Leôncio, o pai, chegaria tarde este dia.
Os garotos já estavam em suas casas. A campainha soou. A mãe de Bartô foi atender. Era Fausto.
- Ele não está. Entra logo.
- E seu filho?
- Está quieto demais, deve estar dormindo, vamos logo para o quarto.
- Sua danadinha, sentiu saudades?
- Estou queimando de saudades. Vamos! – disse a senhora Mendes beijando Fausto e encaminhando-o para o quarto principal.
Subiram desesperadamente a escada e logo estavam no quarto. Tiraram as roupas e entregaram-se à paixão que não podia ser refreada. O garoto Bartô já estava cansado, iria desistir da brincadeira, tirou o cobertor de cima de si e abriu devagar a porta do guarda-roupa.
A cena que viu nunca mais lhe sairia da mente.
Sua mãe...a pessoa em quem mais confiava, com outro homem no lugar que era de seu pai. Aquilo estava errado. Ficou ali, durante vários minutos ouvindo os gemidos e urros da sua mãe. Aquilo o matava, aquilo lhe fazia crescer uma fúria sem tamanho. Mas conteve-se.
Bartô abriu os olhos, lembrando-se desse momento terrível. Naquele dia ele deixou de dar crédito à palavra confiança. Nunca pode ser feliz, entregar-se à uma relação ou ao carinho dos filhos, ou ao abraço dos amigos. No mundo não se tinha amigos. Era um monte de gente interesseira, doida pra te ver no chão. Loucos para tirar tudo que te faz feliz. Qualquer sorriso que se lhe fizesse no rosto logo era roubado. Bartô não acreditava nas pessoas.
Fechou os olhos e lembrou-se do dia que seu pai descobriu a farsa. Descobriu o teatro que sua esposa criara, fazendo dele um palhaço, humilhando-o como homem. Seu pai chegou mais cedo em casa e foi direto para o quarto ansioso para ver a amada. Mas no fim viu a mesma cena que Bartôzinho. Leôncio já não tinha forças para suportar as cobranças da empresa, não tinha como pagar a hipoteca da casa e viviam de aparência um luxo que só existia na cabeça da senhora Mendes. E agora recebera a facada final, justo da pessoa que mais amava no mundo.
No dia seguinte, durante o jantar, seu pai elogiou a comida, perguntou como Bartôzinho estava na escola, como foi o dia de Dona Mendes. Depois de ouvido tudo o que tinham pra dizer, Leôncio foi ao quarto, pegou algo lá, desceu as escadas, sentou-se à mesa. Esposa e filho olhavam o dono da casa inquisitoriamente.
- Espero que vocês sejam felizes sem mim. – disse Leôncio.
Retirou um revólver do bolso e pipocou na têmpora direita.
Bartô se lembra de tudo tão vivamente, constante em sua memória, todos os detalhes daquele dia fatídico. Ficaram atônitos. Não tiveram reação nem para gritar. Ficaram observando o corpo de Fausto pender para o lado esquerdo. Caindo no chão. Bartôzinho olhou sua mãe. “Você é a culpada!”
- Meu Deus! – balbuciou a mulher com as mãos à boca.
Depois do choque, da polícia, do enterro, sua mãe se casou, dois meses depois, com Fausto. E este acabou pagando as dívidas da família Mendes, ou o que restava dela. Levou Bartôzinho para as melhores escolas do estado. O já velho Bartolomeu se lembrava agora que tudo aquilo, não renderia lucros ou rendimentos para Fausto. Bartô estava dando princípio ao seu próprio cavalo-de-tróia. Sem que se percebesse, ele bolou um plano tão bem feito que não tinha como errar. Criou o assassinato de sua mãe e de seu padrasto.
Fausto sempre consumia uma erva importada. Adorava tomar chá-de-matian, uma iguaria colombiana que só alguns homens da alta roda sorviam. Sua mãe adquirira o gosto de Fausto e sempre às 19h bebiam o chá e iam às reuniões da classe média, ou roda de fofocas. Beberam o chá e uma hora depois estavam estatelados no meio da roda das fofocas, mortos. A polícia nunca encontrou um culpado. E não tinham como incriminar Bartô, na época com 21 anos. Ele acabou ficando com tudo. Um solteirão rico, numa cidade nova. Bartô havia colocado veneno no chá.
Bartô rememorava. E não ousava chorar. Sua vida sempre fora moldada pelo receio. Sua mente trabalhava em excesso, sempre desconfiando de todos que cruzavam seu caminho. Lembrava-se disso agora, prestes a morrer. Em seu leito as lembranças corriam como um rio. Seus olhos já meio apagados pelo tempo não viam as cores do quarto.
Capítulo 3
O braço do prefeito já doía de tanto levantar e abaixar para perceber no relógio o tempo. “Cadê esse infeliz de padre?”
Por fim tomou a única atitude disponível: chamou o pároco local para dispensar as últimas palavras para o morto.
Chegou próximo ao padre e disse:
- Padre, o senhor poderia realizar a cerimônia do despach..., quer dizer do enterro?
- Claro, meu filho. Este homem santo merece umas palavras dignas de louvor.
- Certo, certo, mas seja breve.
O padre ajeitou a manga de sua vestimenta. Tomou a frente. O suor corria livremente pelo rosto das pessoas. Alguns se abanavam, outros disputavam com empurrões brandos uma sombra ou outra, pois ao meio-dia era difícil encontrar uma.
Este padre em questão não era um desses pau-para-toda-obra, era especificamente chamado para realizar casamentos, e este, por sinal, seria seu primeiro discurso fúnebre.
Todos observaram o padre chegar diante do caixão. Com uma mão ele segurava a outra.
- Meus amigos. Estamos aqui reunidos hoje para celebrar este casamento entre o senhor Bartô e a senhora morte...
Todos se olharam, estupefatos pelas palavras do pároco.
- O senhor Bartô que ficou durante tanto tempo separado desta senhora, - continuou – hoje definitivamente se entrega de corpo e alma à sua cônjuge eterna. Não há homem que possa impedir esta união, o tempo já não tem força para separar esta junção. Pois este casamento era uma certeza que o senhor Bartô tinha. A única de sua vida. Viemos aqui para saudá-lo, parabenizá-lo e desejar-lhe que seja feliz nesta lua-de-mel sempiterna. Não fiquem tristes com este acontecimento. Não chorem além do tempo – dizia lentamente observando cada um que ali estava -, pois tudo que vive, um dia perece. O grão que nasce no campo também um dia fenece. Somos como a folha levada pelo vento, - apontava para uma folha de uma árvore ali ao lado - sem um destino certo, de lá para cá. Estamos fadados a um dia encontrar também esta senhora. E nos lançarmos nos braços dela sem rodeios, sem fuga. Pois o fim é que acompanha sempre o começo e o meio. Ele está lá, esperando ser chamado na hora certa. Todos estamos convictos de que este será para nós o último ato. Portanto não fiquem vivendo com receio deste embate. Deus nos deu a vida para que vivêssemos e não para ficarmos com medo de ir lá fora e nos molharmos um pouco com as gotas da chuva. Lembrem-se de que os dias são maus. Lembrem-se de que não somos vítimas, não somos santos. Todos teremos um dia que prestar contas. Mas nem por isso nos esconderemos na caverna. A morte leva hoje seu Bartô para seus braços, mas nos deixa a mensagem, nos deixa o convite. O convite para o casamento marcado para um dia qualquer, num tempo qualquer, num lugar qualquer - virou-se para o caixão – Vai senhor Bartolomeu, seja feliz nessas núpcias, que tua alma se regozije no paraíso.
Alguns choravam, outros murmuravam. No começo do discurso alguns ficaram incrédulos com a frase acerca do casamento, pensando que seria um desastre de discurso. Mas no fim aplaudiram. E prestaram suas últimas homenagens ao noivo. Alguns choravam de verdade, não pelo morto, mas pela certeza do convite. Outros já se retiravam. O caixão foi descido ao chão. Rosas eram jogadas no esquife. Começaram a jogar a terra. O peso de cada porção de terra caindo parecia um murro numa parede. Todos se foram. Já não havia celebração. Apenas uma cova cheia de mais um morador.
Bartô rememorava. E não ousava chorar. Sua vida sempre fora moldada pelo receio. Sua mente trabalhava em excesso, sempre desconfiando de todos que cruzavam seu caminho. Lembrava-se disso agora, prestes a morrer. Em seu leito as lembranças corriam como um rio. Seus olhos já meio apagados pelo tempo não viam as cores do quarto.
Capítulo 3
O braço do prefeito já doía de tanto levantar e abaixar para perceber no relógio o tempo. “Cadê esse infeliz de padre?”
Por fim tomou a única atitude disponível: chamou o pároco local para dispensar as últimas palavras para o morto.
Chegou próximo ao padre e disse:
- Padre, o senhor poderia realizar a cerimônia do despach..., quer dizer do enterro?
- Claro, meu filho. Este homem santo merece umas palavras dignas de louvor.
- Certo, certo, mas seja breve.
O padre ajeitou a manga de sua vestimenta. Tomou a frente. O suor corria livremente pelo rosto das pessoas. Alguns se abanavam, outros disputavam com empurrões brandos uma sombra ou outra, pois ao meio-dia era difícil encontrar uma.
Este padre em questão não era um desses pau-para-toda-obra, era especificamente chamado para realizar casamentos, e este, por sinal, seria seu primeiro discurso fúnebre.
Todos observaram o padre chegar diante do caixão. Com uma mão ele segurava a outra.
- Meus amigos. Estamos aqui reunidos hoje para celebrar este casamento entre o senhor Bartô e a senhora morte...
Todos se olharam, estupefatos pelas palavras do pároco.
- O senhor Bartô que ficou durante tanto tempo separado desta senhora, - continuou – hoje definitivamente se entrega de corpo e alma à sua cônjuge eterna. Não há homem que possa impedir esta união, o tempo já não tem força para separar esta junção. Pois este casamento era uma certeza que o senhor Bartô tinha. A única de sua vida. Viemos aqui para saudá-lo, parabenizá-lo e desejar-lhe que seja feliz nesta lua-de-mel sempiterna. Não fiquem tristes com este acontecimento. Não chorem além do tempo – dizia lentamente observando cada um que ali estava -, pois tudo que vive, um dia perece. O grão que nasce no campo também um dia fenece. Somos como a folha levada pelo vento, - apontava para uma folha de uma árvore ali ao lado - sem um destino certo, de lá para cá. Estamos fadados a um dia encontrar também esta senhora. E nos lançarmos nos braços dela sem rodeios, sem fuga. Pois o fim é que acompanha sempre o começo e o meio. Ele está lá, esperando ser chamado na hora certa. Todos estamos convictos de que este será para nós o último ato. Portanto não fiquem vivendo com receio deste embate. Deus nos deu a vida para que vivêssemos e não para ficarmos com medo de ir lá fora e nos molharmos um pouco com as gotas da chuva. Lembrem-se de que os dias são maus. Lembrem-se de que não somos vítimas, não somos santos. Todos teremos um dia que prestar contas. Mas nem por isso nos esconderemos na caverna. A morte leva hoje seu Bartô para seus braços, mas nos deixa a mensagem, nos deixa o convite. O convite para o casamento marcado para um dia qualquer, num tempo qualquer, num lugar qualquer - virou-se para o caixão – Vai senhor Bartolomeu, seja feliz nessas núpcias, que tua alma se regozije no paraíso.
Alguns choravam, outros murmuravam. No começo do discurso alguns ficaram incrédulos com a frase acerca do casamento, pensando que seria um desastre de discurso. Mas no fim aplaudiram. E prestaram suas últimas homenagens ao noivo. Alguns choravam de verdade, não pelo morto, mas pela certeza do convite. Outros já se retiravam. O caixão foi descido ao chão. Rosas eram jogadas no esquife. Começaram a jogar a terra. O peso de cada porção de terra caindo parecia um murro numa parede. Todos se foram. Já não havia celebração. Apenas uma cova cheia de mais um morador.
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