[Conto] Soldadinho de Brinquedo

Era uma vez uma garota que achava que o mundo não gostava dela. Tinha seus dez anos. Vivia trancada no seu quarto, sem contato com o exterior. Tinha vários brinquedos, mas seu especial era um soldadinho que um primo seu lhe dera um dia. O soldadinho tinha calça azul e uma camiseta vermelha de mangas longas, um chapéu engraçado com desenhos de espadas formando um xis e carregava uma espada sem ponta. Muito parecido com os guardas reais da rainha da Inglaterra, porém de madeira. Exibia um sorriso leve, bem desenhado e os olhos atentos, porém meigos. Teve um dia que a garota estava muito triste e sozinha. E nesse dia resolveu conversar com o soldadinho como se ele fosse gente. E para sua surpresa ele lhe respondeu. Ela ficou estática. Mas ao mesmo tempo feliz. Havia alguém com quem conversar agora. 

Então ela contou sobre tudo o que lhe afligia. Sobre a falta de atenção que seus pais tinham por ela. Sobre sua auto-estima baixa. Sobre seu vazio interior. Despejou na mente do soldadinho toda sua vida. O soldadinho ouvia tudo, e sempre lhe falava que havia esperança. Certa vez o soldadinho viu que ela chorava e resolveu cantar para ela, algo que ele acabara de criar. Ela começou a sorrir e viajar nos versos da canção do soldadinho. E então toda vez que o mundo parecia sufocá-la ela pedia para o soldadinho cantar uma canção. E ele sempre fazia isso, sem nunca se cansar. A garota disse que o soldadinho seria o melhor amigo dela...para sempre.

Mas o para sempre acaba um dia...

Certa vez a mãe dela deixou entrar a filha da vizinha, da mesma idade da garota. Ela ficou mais feliz do que já estivera um dia. Começou a ir visitar essa amiguinha quase sempre. Levava suas bonecas para a casa dela, andavam de bicicleta, passeavam no zoológico, brincavam no parque de árvores reluzentes. E nisso o soldadinho foi ficando de lado, empoeirado, com o semblante triste. Gritava por atenção, mas sua amiga não conseguia ouvir. Ela foi ficando cada vez mais distante dele, distante...até que um dia o soldadinho sumiu.

A garota nem notou sua falta. Alguns anos se passaram. Estava feliz demais com sua amiga de verdade e com as outras amizades que esta trouxe. Já não era uma amiga, mas várias. Houve uma ocasião porém em que teve um lampejo de lembrança do amigo. Foi ao quarto, procurou no armário, na escrivaninha, no balde de brinquedos e debaixo da cama. Foi só embaixo da cama que encontrou algo, não era o soldadinho, mas algo dele. Era o chapeuzinho com desenhos de espadas. Ela tremeu. O que havia acontecido ao seu soldadinho? O que sucedera ao seu melhor amigo? Observou melhor o chapéu. Ao lado dele havia algo que parecia ser um poema. Ela começou a ler:

Meu raio de sol em dias escuros
Meu doce sabor em tempos amargos
A vida se tornou vazia sem atenção
Pois já não posso ser real pra você.

A vida nos prega peças
Nos faz de marionetes às vezes
E quando pensamos estar certos
Um balde de água fria nos é jogado.

Existo e sempre existirei
Dentro do seu coração estarei
Nas noites frias de inverno
Nas noites de tristeza e solidão.

Viajamos o mundo numa folha de papel
Sentimos muito mais 
Do que se tivéssemos
Dez vidas vivido.

Você cresceu, isso é fato
Agora tenho eu que me esconder
Pois sua inocência 
É que me fazia real.

A garota chorou. Havia perdido a pessoa mais importante. O ombro em que sempre chorou já não estava disponível para embalá-la naquela onda de saudade. Seu soldadinho sumiu para sempre. No ardor do desespero, na busca insana de reencontrá-lo foi falar com sua mãe.
- Mãe, você viu um soldadinho de brinquedo? Estava no meu quarto, media em torno de 30 cm.
- Filha, - a mãe ficou assustada com o comportamento da filha - eu nunca vi esse brinquedo no seu quarto.
- Mãe, ele estava lá. - disse a garota com os olhos cheios de lágrimas.
- Meu anjinho, você está bem? Eu nunca vi você brincando com um brinquedo desses. Deve ser de alguma amiguinha sua e ela deve ter levado.
- Não, mãe. Ele é meu! A gente sempre conversou.
- Não grite comigo menina. Você anda conversando com um brinquedo?
- Ele não era um brinquedo normal, ele falava. E até escreveu esse poema pra mim.

A garota lhe entregou o papel. A mãe percorreu as linhas rabiscadas e constatou:
- Filha, essa letra é sua.

A garota levantou os olhos para o rosto da mãe. Uma lágrima corria pelo seu olho esquerdo,da garota. Pegou o poema e viu que era justamente sua letra ali. Não se lembrava de ter escrito aquilo.

Comentários

Andarilha disse…
adoro esse conto do soldadinho....

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